" Creio que foi principalmente
a Universidade de Columbia, cosmopolita como nenhuma e cheia de provincianos do
mundo inteiro, que me distanciou para sempre do puro cosmopolitismo, depois de
me ter curado do bairrismo também puro. Mas não para me tornar um chauvinista
ou nacionalista intolerante, e sim um adepto da combinação de duas tendências
que só combinadas me parecem psicológica e culturalmente criadoras ou fecundas:
provincianismo e universalismo; regionalismo e cosmopolitismo; continentalismo
e oceanismo. O contacto com centenas de estudantes das origens mais diversas –
não só de quase toda a América, como da Europa, da Ásia, da África, da
Austrália, de arquipélagos e de ilhas de quase todos os mares – ensinou-me,
sendo eu próprio ainda estudante, que o melhor tipo humano é formado por
aqueles indivíduos que, experimentados e mesmo à vontade no contacto com o
mundo e com as metrópoles, não arrenegam das suas raízes provincianas nem
escondem as cicatrizes regionais para ostentar uma superioridade que estaria em
não guardar e super-homem nem no corpo nem na alma traço nenhum de formação
rural ou do passado local.
Creio
que esta é também a lição do Ceará ao Brasil; a lição constante dos cearenses
aos demais brasileiros. Nenhum brasileiro é mais cosmopolita. As anedotas
chegaram a exagerar esse pendor do cearense; a caricatura chegou a fazer dele
um cigano ou judeu brasileiro; a lenda chega a salpicar de cearenses ricos ou a
caminho de riqueza, não só Nova York e Londres, como o próprio Oriente; há quem
jure que o Dr. Goebbels é cearense; mas, em compensação, há quem suponha o
mesmo do general Montgomery; e é tradição que do Ceará largou-se uma vez para a
Inglaterra um grupo meio louco de rapazes – simples Tarzans de fundo de quintal
brasileiro – empregados a borda, cearenses sem dinheiro, que ali teriam se
revelado maravilhosos em trabalhos de circo.
Aliás,
são dos dias comuns as maravilhas de circo que os jangadeiros cearenses
praticam nas águas dos “verdes mares bravios” de sua terra natal, fazendo da
rotina da pesca uma constante aventura. Nem devemos nos esquecer do fato de
que, durante os grandes dias da campanha da Abolição, a jangada cearense foi o
trampolim de que muito negro do Brasil feudal pôde dar o salto da escravidão
para a liberdade; e o jangadeiro, o mágico que fez desaparecer centenas de
escravos das senzalas de Pernambuco e de Alagoas e surgir centenas de homens
livres nas praias do Ceará. De modo que o espírito de iniciativa, de luta e de
aventura do cearense não está ligado apenas a triunfos nas armas, na guerra do
Paraguai, na colonização da Amazônia, no comércio, na indústria, nas letras, na
arte da administração; está também ligado á historia da liberdade no Brasil.
Por
outro lado brasileiro nenhum é mais do seu torrão, da sua terra, da sua província
do que o cearense. Não é só a cabeça chata e a face triangular que lhe anunciam
a origem onde quer que se encontre; conserva gestos, modos de falar, maneiras
de andar, de ouvir, de olhar, de rir que são igualmente muito suas, sendo, ao
mesmo tempo, muito do Brasil.
A
unidade brasileira muito deve ao cearense que sendo um dos brasileiros mais
fortemente marcados na carne e na alma por combinações étnicas em que
predominam os sangues português e ameríndio e entrou talvez o cigano e por
cicatrizes de lutas brasileiríssimas com o clima e com o solo áspero, com a
seca e com a fome, é também o que, depois dos Bandeirantes, mais se tem
espalhado, de norte ao sul do Brasil, pelas cidades grandes e pelos ermos
paludosos e terras virgens de civilização, cumprindo um destino supra-estadual
ou supra-regional de unificador do Brasil – regiões – e de domesticar ou
civilizador de brasis – indígenas ainda agrestes – que eleva sua historia dos
limites provincianos ou das fronteiras estaduais para torná-la, como outrora a
dos Bandeirantes e a dos Jesuítas, história dinamicamente brasileira e história
criadora em dimensões continentais.
A
história do Ceará pode, como a dos outros Estados, ser quietamente escrita sob
critério estadual ou regional. A historia do cearense, porém, de tal modo se
vem confundindo com a historia da autocolonização do Brasil e da unificação
brasileira que só deve ser traçada sob o critério mais dinamicamente
transregional do que seja capaz um historiador social ou um sociólogo
especializado no estudo histórico da miscigenação na América chamada portuguesa
e do desenvolvimento do Brasil em povo ou cultura extra-européia, mestiça,
americana. É uma historia que ainda nem sequer se esboçou sob tal critério
sociológico, a do cearense. Entretanto, já nos faz falta e conhecimento exato
da atividade extra-estadual do cearense; o estudo especializado de sua
influência nas áreas brasileiras que tem fecundado com seu sangue e com suas
especialidades de cultura por excelência dinâmica, ativista e ascética.
Uma
cultura de fabricante de redes mais para o sono indispensável e nômade que para
o luxo do repouso gostoso, sedentário e contemplativo; de fabricante antes de
alpercatas duras, ascéticas e franciscanas, próprias para as caminhadas ásperas
e longas, que de chinelos macios, burgueses, de couro mole, em que os pés se
deliciam nos ócios caseiros e nos prazeres da sedentariedade, de especialista
no preparo de uma carne seca – a do Ceara – que é outra expressão do seu
espírito ascético e do seu desdém pelos requintes de mesa; de criador de
valores tão antagônicos aos valores baianos – exceção feita da renda – que são
talvez estes – o cearense e o baiano – os dois grupos sub-nacionais que melhor
se completam com suas diferenças para darem harmonia e complexidade ao todo
brasileiro, o cearense concorrendo para esta harmonia com seu escetismo
angulosamente magro, romântico, ativista, andejo, inquieto, empreendedor,
franciscano, fraternal – o baiano com sua voluntariosidade gorda, sedentária,
lentamente criadora de valores profundos e estáveis, fecundamente maternal, ou
antes, matriarcal: uma maternidade que tem feito da Baía não só “a Virginia do
Brasil”, a mãe dos grandes estadistas, dos grandes diplomatas, dos grandes
contemporizadores, dos grandes presidentes de gabinete, de poetas, de
escritores, de oradores, de gramáticos, de latinistas, de classistas, como a
mãe de insurretos magníficos, de bravos advogados, de brasileiros oprimidos, de
lutadores iguais aos cearenses na coragem, na firmeza e na resistência aos que
abusam do poder. É que parece haver uma zona de acuidade política e de
sensibilidade moral em que a vocação maternal da Baía se confunde com a vocação
fraternal do Ceará na mesma ira em que são capazes de se extremar baianos e
cearenses, e com eles, brasileiros de outras regiões quando mais profundamente
feridos naquele conjunto de liberdade e de direitos que todos consideramos
essenciais à dignidade americana, à dignidade humana.
Há
anos, quando se falava em regionalismo no Brasil, muito brasileiro sincero e
bom sentia arrepiar-lhe um medo: o do separatismo. O medo da descentralização
que significasse desintegração. O medo de que o baiano, o gaúcho, o
pernambucano, o paulista que insistisse na sua condição ou tradição regional
não fosse ortodoxamente brasileiro. Vamos hoje vencendo esse pavor, justo
diante daquele estadualismo ou seccionalismo que á primeira Republica deixou
desenvolver-se entre nós e contra o qual soube colocar-se a sagacidade política
do Sr. Getulio Vargas, mas não diante do regionalismo ou provincianismo
independente de pruridos prussianos de dominação ou catalães, de separação. É
que não há motivo nenhum para temer-se o provincianismo, muito menos o
regionalismo, autêntico. Este é, por natureza orgânico: um regionalismo
inseparável do inter-regionalismo. Um regionalismo que tem na interdependência
das regiões sua principal ou essencial condição de vida. Um regionalismo em que
a espontaneidade de vida e de cultura que se deseje para a gente de uma região,
em vez de um ideal de suficiência, importa no máximo de interdependência entre
as regiões que formam uma nação; e no caso das nações da América, que
constituem a base ou o nervo de um sistema continental caracterizado pela
constância de aspiração democrática.
É
dentro desse critério de regionalismo que o que há de caracteristicamente
cearense no Ceará me parece interessar de modo profundo ao desenvolvimento da
cultura brasileira, da cultura americana, da nova cultura democrática para que
caminhamos e em que o mundo inteiro se integrará ao, ganha a guerra atual, ao
que parece, já no fim, não se perder a paz. Pois toda vivacidade do espírito
local, da energia regional, de tradição provinciana corresponde a reservas de
valores humanos de que o mundo inteiro vai necessitar em sua provável fase nova
de maior interdependência e de maior cooperação não só econômica, em
particular, como cultural, em geral. O mundo a reorganizar-se, dentro de
condições de maior interdependência e de mais inteligente aproveitamento de
recursos da natureza e de valores de culturas, creio que não vai só
interessar-se no que o Brasil tem de materialmente mais valioso em suas várias
regiões, mas também em sua variedade de energia, de talento e de aptidão humana
em seus cearenses do saber largamente jurídico de Clovis Beviláqua, do espírito
de luta e da capacidade de organização de Juraci Magalhães e de Juarez Távora,
do desassombro de Jeová Mota e de Austragésilo de Athayde e não apenas nas
redes, nas rendas e nas peles do Ceará; em seus baianos do talento médico de
Juliano Moreira, do poder poético de Jorge Amado e da visão artística de
Prescilliano e não apenas nos charutos, nos quitutes e no cacau da Bahia em
seus paraenses da capacidade científica de Afrânio do Amaral e não apenas nas
madeiras e nas tartarugas do Pará; em seus paulistas do espírito de iniciativa
dos Bandeirantes e do gênio de organização social de José Bonifácio e não
apenas no café de São Paulo; em seus mineiros da força e do arrojo de escultor
chamado “Aleijadinho”, do poder inventivo de Santos Dumont e da profundidade
lírica de Carlos Drummond de Andrade e não apenas na manteiga e nos queijos de
Minas; em seus pernambucanos da energia de Dom Vital, de Joaquim Nabuco, de
Oliveira Lima e da compreensão poética do mundo que distingue o grande poeta
que é Manuel Bandeira e não apenas nos doces de goiaba e nas fibras de
Pernambuco; em seus gaúchos da intrepidez de Osório e de Anita Garibaldi e não
apenas nas casas do Rio Grande”.
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